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Mimimi ou Machismo Estrutural?

16 Nov 2022

O ano é 2022. Denúncias de machismo e misoginia já são rotina há tempos no mundo. Mas se em meios como o corporativo, por exemplo, a ausência de equidade entre os gêneros é um tópico frequente e já antigo, na indústria musical eu sinto que a gente ainda engatinha no diálogo sobre esse tema. O que é até irônico, nesse meio que seria tão pra frentex.

Quando a gente trabalha bastante e já conquistou algum espaço, existe um certo conforto, mesmo que falso, em simplesmente deixar as coisas do jeito que elas estão. Questionar e levantar problemas é se expor, principalmente quando as questões apontam o dedo pro comportamento de quem manda no rolê: os homens. Depois de pensar bastante, decidi que o conforto, seja ele real ou não, não é mais uma opção. Se a gente não fala, quem oprime assume que não tem nada de errado na forma como age. As coisas não mudam. É aquela história: quem cala, consente.

Minha busca por esse espaço específico e nichado pra falar sobre isso (no lugar de gritar nas redes sociais, por exemplo, caminho mais comum nos tempos atuais), fala sobre um desejo simples: contribuir pra que as mulheres possam simplesmente subir no palco e tocar em paz, sem precisar lidar com situações desagradáveis de machismo explícito ou estrutural. Pra que elas tenham também o espaço devido. Sustentar o desconforto de falar sobre isso é necessário.

Sou DJ há quase uma década. Nesse universo dominado pelos homens, a dinâmica do mercado foi ficando clara pra mim ao longo dos anos. No meu meio, considerado “alternativo”, existe toda uma roupagem de desconstrução que vem desse rótulo, uma ideia geral de que os profissionais e até mesmo o público são pessoas que andam na contramão do conservadorismo. É aí que entra o machismo estrutural: aquele que, por mais que a gente tente negar que existe, escapa nos detalhes. Nas pequenas situações desagradáveis que, de tão frequentes, se tornam a regra – e acabam sendo naturalizadas tanto por nós, mulheres, quanto pelos homens, que talvez nem enxerguem a raiz do próprio comportamento.

A disparidade já começa na velocidade de ascensão. Entendo a hierarquia e a escada natural de qualquer carreira, sei que os degraus exigem tempo e dedicação pra que sejam alcançados. A questão é que o relógio pra mulher parece correr diferente, isso quando corre. Todos os dias, vejo DJs homens que começaram a tocar ontem ocuparem o horário principal de grandes eventos, sem qualquer nível fora da curva que justifique isso. Mulheres, salvo exceções, são convidadas “pra abrir pista” pra quem tem metade ou menos da experiência, com a desculpa de que “o som delas se encaixa melhor ali”. Se um produtor só nos ouviu tocar em aberturas, como pode dizer que conhece o nosso som e sabe onde ele se encaixa? E operam dessa forma também enquanto fingem dar palco pra mulheres menos padrão, nestes tempos em que a representatividade finalmente entrou na moda – e esta seria uma evolução bonita de que eu jamais reclamaria. Se fosse verdade. As razões ainda são mercadológicas e de autoproteção, o que fica sublinhado pelos números ainda muito desiguais.

Outro dia ouvi de um produtor que “tem pouca mulher tocando”. Essa foi a defesa dele quando questionado sobre o line nada equânime das festas que promove. Essa postura defensiva de quem teria poder pra mudar alguma coisa resume tudo o que mantém as engrenagens do machismo funcionando: preguiça, conforto e uma postura isentona que vem de um puta privilégio.

Momentos assim levantam uma série de perguntas que eu acho importante a gente se fazer. Será que um homem como esse procurou, de fato, por DJs que não fossem homens? E mais: como uma mulher vai ficar conhecida no meio se aqueles que podem não dão palco pra ela – e, quando dão, parecem fazer isso só pra não pegar tão mal no flyer? Enquanto o line-up das grandes festas continuar com a média de uma mulher pra dez homens, com mulheres experientes relegadas a horários secundários e sem confiança alguma da parte de quem contrata, não dá pra engolir a balela de que existe preocupação real com igualdade e representatividade. Daqui de onde eu vejo, os homens que contratam mulheres com essa lógica não querem ouvir mulheres. Querem se proteger de críticas. Isso pra falar só da questão de gênero, que é a que me cabe – questões como a racial, a de orientação sexual e a de identidade de gênero, por exemplo, também vêm sendo tratadas como uma espécie de “sistema de cotas”, em que produtores só enfeitam o line com uma minoria absoluta, pra aliviar a própria consciência e pra gringo ver. Questão que passa, eu reforço, pelos preconceitos estruturais, tão mais difíceis de quebrar do que os individuais. O Brasil é o país onde vemos uma DJ trans, que precariamente recebe espaço mais adequado pra mostrar seu trabalho, sofrer transfobia no fim do dia, pela boca do dono do evento. Isso diz muito sobre a intenção pobre (e sobre a eficácia zero) do pouco espaço que fingem dar pra quem não é homem nesse universo.

Sobre esse tema, fico com a definição que ouvi uma vez de uma mana: pra uma mulher se destacar como DJ, tem que entregar no mínimo o dobro do que entrega um homem. Um homem meia boca pode chegar muito longe. Uma mulher, jamais – se tocou bem uma vez e fez queixos caírem, o nível da surpresa escancara ainda mais o problema. Foi sorte. Na música, se você é mulher e é só boa, ninguém te leva a sério. Subir no palco é, o tempo todo, sobre se provar digna de estar ali outra vez.

Além de tocar, nesses quase dez anos de carreira eu também sou plateia com frequência. Eu não só sinto como vejo de perto a disparidade entre os gêneros. Começa antes mesmo do set: eu faço um esforço pra lembrar de uma boa experiência com técnicos de som e não consigo. O padrão é sempre o de homens agindo com arrogância, e somos tratadas como burras ou até ignoradas, mesmo tendo razão. Já chegaram a perguntar pra uma amiga DJ se ela conferiu se o equipamento estava na tomada porque o som não estava funcionando. Técnicos que interferem no meu trabalho e no das manas que escuto, de formas que jamais vi fazerem com DJs homens nas mesmas situações. Isso pode parecer besteira, mas é mais um exemplo do quanto pode ser desgastante simplesmente atravessar uma noite de trabalho sendo mulher.

Em um dos casos mais tensos que já vi, eu acompanhava o set de uma conhecida em um grande festival europeu. A apresentação mais importante da vida dela, nas palavras da própria. Por preguiça, antes dela entrar, o técnico, que queria poupar trabalho pra si mesmo, sugeriu que ela tocasse com o mesmo rider do DJ anterior que acabava de sair do palco, que era diferente do equipamento que ela havia solicitado previamente. Acuada diante de uma experiência em que certamente já se sentia sortuda, pra além de não querer parecer amadora ou limitada, ela topou. A partir dali, teve problemas com um equipamento que não era o dela, mas era tarde demais pra reverter a situação. A plateia encheu rápido por conta de uma transição entre palcos do festival e o técnico ficou testando e mexendo no volume do som ao seu bel prazer, no meio do set dela. Os efeitos ruins disso ficavam claros ao público e a sensação, obviamente, era de que a culpa era da DJ. Provoco outra vez a reflexão: será que um DJ com um pau entre as pernas teria passado por isso?

Quando tentei conversar com homens sobre esse cenário, a questão ficou ainda mais triste. Tenho amigos que considero realmente engajados no próprio processo de desconstrução, sempre abertos ao diálogo. Mesmo eles tiveram reações que confirmam a cegueira geral da galera. Ouvi o clássico “acontece comigo também”. Precisei de muito exemplo prático pra ser entendida por eles. Se os caras mais bem-intencionados que eu conheço não enxergam os fatos, percebo que o buraco é ainda maior. Fica mais complexo ainda quando a gente vê mulheres em negação, seja por privilégios e apadrinhamentos específicos de suas próprias histórias, seja porque é mesmo difícil se reconhecer como vítima de opressões e não saber como mudar isso.

Eu, por aqui, sigo encontrando formas de mostrar meu trabalho e encarar novos degraus, mesmo com um panorama tão desfavorável. Não porque eu seja genial ou fora da curva. Pelo contrário: porque nós mulheres, assim como tantos homens, também somos muito boas nisso, simplesmente. Também sabemos o que estamos fazendo – e o mercado aqui no Brasil é que não cria um mínimo de estrutura pra validar e mostrar isso ao mundo. Nos festivais e eventos que pude acompanhar lá fora, ficou clara a preocupação dos produtores em levantar lines realmente inclusivos em todos os palcos e horários. Já é uma realidade pra eles. Será que é tão difícil trazer o modelo pro nosso país pra além das aparências?

Hoje, aqui, escrevo pra que mais manas reflitam sobre seus próprios trabalhos. Sobre o espaço, o tratamento e o respeito que merecem. Sobre se estão ou não recebendo de acordo. Escrevo, ainda, pra que os homens com poder de alterar esse cenário façam isso. Pra que se impliquem na questão e parem de fazer vista grossa pra manter o bom clima nesse meio pseudoalterna que é o nosso. Pra que escolham sair do conforto de seus privilégios e tenham a coragem de mexer na equação que nos mantém invisíveis. Saio do silêncio pra que a reflexão aconteça. Quem sabe assim, dentro de alguns anos, eu e todas as DJs mulheres no Brasil possamos nos concentrar só nisso: subir no palco pra fazer o próprio trabalho e sair de lá feliz.

Texto por Martha Pinel.

 

Mimimi ou Machismo Estrutural?